"Era uma quinta feira Santa, e ela estava no seu local de trabalho. Entretanto, malas feitas, amêndoas compradas, petiscos combinados. Ansiava o meio-dia, para partirem todos - Pai, Mãe, Irmão, Cunhada, Sobrinha, ela, Marido e cão Anourah, em dois carros, rumo à Serra. Tudo feitoa tempo, traçado ao mínimo detalhe, para não haver falhas. Perto das onze horas, telefonou e atendeu Pai. Falaram que estava tudo bem, que estavam quase a ir de viagem, que almoçariam pelo caminho para fugir às longas bichas ... o contentamento reinava naquelas vozes. Tantas vezes falada e sempre adiada, aquela era a primeira Páscoa passada na Serra.
No Serviço, o pessoal despachava os últimos papéis, findos os últimos exames aos doentes marcados. A alegria e a pressa sentia-se no ar. Beijos e votos de Páscoa feliz, eram ouvidos e dados.
De repente, a mudança. Telefonema. Presença repentina de seu Marido de fácies desorientado, pasmado. Seu Pai dera entrada no Hospital Curry Cabral. Pasmo. Aturdimento. Desorientação. Alguém lhe deu um calmante amargo e lhe disse para levar a bata, sempre seria mais fácil o acesso. Como um autómato, ela pegou na mala e saiu do Serviço com Marido. Mãos e faces constrangidas olharam-na e tocaram-na. A desejarem as melhoras.
Já no Hospital, a Médica do Serviço de Urgência falou, esforçou-se por esclarecer a situação e comunicou qualquer coisa como "não haver muito a fazer, entrara em coma". Tinha sido no tronco cerebral. Que se fosse despedir de seu Pai. Com o pasmo estampado na cara ela encostou-se à porta, a olhar. Depois de alguns momentos, ela entrou. Passou pelos outros doentes mas apenas via seu Pai. Deitado numa cama, com os olhos fechados, "soro" no braço direito, com um respirar ruidoso. Ele não abriu os olhos. Ela agachou-se junto da cama, pegou-lhe na mão e levantou-lhe o braço, apertando-o junto ao peito. Instantes depois, aproximou-se do seu ouvido esquerdo e disse-lhe que havia mais marés que marinheiros, que ele se iria pôr bom e depois que todos iriam à Serra. A festa ía ser adiada, apenas isso. Pai não pareceu ouvi-la. Despediu-se, com o olhar. Deu-lhe um beijo, fez-lhe uma festa na cara. Endireitou-se e abandonou a sala. À porta, a Médica aguardava-a. Com alguma ternura pegou-lhe na mão e depositou nela um relógio, um fio com crucifixo e duas alianças. Da boca saiu-lhe lamento muito. Ela olhou-a - era de origem indiana - inclinou-se, deu-lhe um beijo, agradeceu e saiu dali, corredor fora. Dirigiu-se à sua família, que a aguardava ansiosa por notícias. Entregou a sua Mãe os objectos pessoais que guardava nas duas mãos fechadas em concha. Passou a informação médica à Mãe, ao Irmão ao Marido. Choros, lágrimas, abraços, espantos. Perguntas, houve, em catadupa. Respostas não as conhecia. Já na rua, o ar fresco a bater-lhe nas faces, telefonou. Incrédula, queria respostas. E ouviu-as de novo. No tronco cerebral? Lamentavam, mas seria difícil a recuperação. Quatro adultos atarantados, unidos pela dor, sentiam-se impotentes, olhavam-se, questionavam-se. Mãe e Irmão ficaram. Ela nada estava a fazer ali. Pai estava no sítio certo, entregue aos cuidados dum Hospital. Logo telefonaria. Logo se veria. Logo. Logo. Despediu-se da família.
Foi para sua casa com Marido. Debaixo do duche, soluços, água e cloreto de sódio. Depois só desejava dormir, fugir da realidade. Ausentar-se por momentos. Acordou perto das seis da manhã. Pesadelo? Não. Levantou-se e dirigiu-se ao telefone. Ligou para o Hospital. Atendeu uma mulher a quem pediu para ser os seus olhos e que lhe desse notícias do senhor seu Pai. Aguardou resposta e uma voz de Enfermeira comunicou o incompreensível. Seu Pai tinha a falecido nessa madrugada. De 6ª Feira Santa. O inaceitável, o inacreditável havia acontecido. Ligou à Mãe e ao Irmão. Recorda-se de haver pessoas que acompanharam a sua família, que estiveram lá, presentes, compartilhando a dor. Entorpecida, na última hora que passou à cabeceira da urna, ela deixou a memória voar e rever momentos, muitos, bons e menos bons. Sorria e chorava. Os dedos acariciaram os caracóis do cabelo de seu Pai. Ele sentiria? Claro que não. Mas foi a forma mais íntima que achou para se despedir dele. Pareceu querer transmitir em pensamento que esqueceria todas as "sem razão" que a tinham feito sofrer. Pai severo, à moda antiga, esse senhor Pai. Agradeceu-lhe por ter sido o seu. Desejou-lhe boa viagem. Alguém fora culpado? Isso de ser no tronco cerebral, porquê? Como? Nada a fazer? Estas questões passaram-lhe pela ideia. Mas que mais fazer senão aceitar? Faria as perguntas mais tarde. Não ali. Não naquela altura. Acompanhou-o à sua última morada. Desceu à Terra, o nosso comum destino, no Sábado de Pascoela de 1999, durante uma manhã soalheira."
No oitavo ano de ausência do senhor meu Pai, ainda me sinto órfã. Estamos a pensar ir à Serra, passar a Páscoa, este ano. Os mesmos. Continuamos por cá, vivos e a mexer. Só o cão Anourah também partiu, mas há outra no seu lugar - a Bianca. Iremos? Desta vez espero ir.
No Serviço, o pessoal despachava os últimos papéis, findos os últimos exames aos doentes marcados. A alegria e a pressa sentia-se no ar. Beijos e votos de Páscoa feliz, eram ouvidos e dados.
De repente, a mudança. Telefonema. Presença repentina de seu Marido de fácies desorientado, pasmado. Seu Pai dera entrada no Hospital Curry Cabral. Pasmo. Aturdimento. Desorientação. Alguém lhe deu um calmante amargo e lhe disse para levar a bata, sempre seria mais fácil o acesso. Como um autómato, ela pegou na mala e saiu do Serviço com Marido. Mãos e faces constrangidas olharam-na e tocaram-na. A desejarem as melhoras.
Já no Hospital, a Médica do Serviço de Urgência falou, esforçou-se por esclarecer a situação e comunicou qualquer coisa como "não haver muito a fazer, entrara em coma". Tinha sido no tronco cerebral. Que se fosse despedir de seu Pai. Com o pasmo estampado na cara ela encostou-se à porta, a olhar. Depois de alguns momentos, ela entrou. Passou pelos outros doentes mas apenas via seu Pai. Deitado numa cama, com os olhos fechados, "soro" no braço direito, com um respirar ruidoso. Ele não abriu os olhos. Ela agachou-se junto da cama, pegou-lhe na mão e levantou-lhe o braço, apertando-o junto ao peito. Instantes depois, aproximou-se do seu ouvido esquerdo e disse-lhe que havia mais marés que marinheiros, que ele se iria pôr bom e depois que todos iriam à Serra. A festa ía ser adiada, apenas isso. Pai não pareceu ouvi-la. Despediu-se, com o olhar. Deu-lhe um beijo, fez-lhe uma festa na cara. Endireitou-se e abandonou a sala. À porta, a Médica aguardava-a. Com alguma ternura pegou-lhe na mão e depositou nela um relógio, um fio com crucifixo e duas alianças. Da boca saiu-lhe lamento muito. Ela olhou-a - era de origem indiana - inclinou-se, deu-lhe um beijo, agradeceu e saiu dali, corredor fora. Dirigiu-se à sua família, que a aguardava ansiosa por notícias. Entregou a sua Mãe os objectos pessoais que guardava nas duas mãos fechadas em concha. Passou a informação médica à Mãe, ao Irmão ao Marido. Choros, lágrimas, abraços, espantos. Perguntas, houve, em catadupa. Respostas não as conhecia. Já na rua, o ar fresco a bater-lhe nas faces, telefonou. Incrédula, queria respostas. E ouviu-as de novo. No tronco cerebral? Lamentavam, mas seria difícil a recuperação. Quatro adultos atarantados, unidos pela dor, sentiam-se impotentes, olhavam-se, questionavam-se. Mãe e Irmão ficaram. Ela nada estava a fazer ali. Pai estava no sítio certo, entregue aos cuidados dum Hospital. Logo telefonaria. Logo se veria. Logo. Logo. Despediu-se da família.
Foi para sua casa com Marido. Debaixo do duche, soluços, água e cloreto de sódio. Depois só desejava dormir, fugir da realidade. Ausentar-se por momentos. Acordou perto das seis da manhã. Pesadelo? Não. Levantou-se e dirigiu-se ao telefone. Ligou para o Hospital. Atendeu uma mulher a quem pediu para ser os seus olhos e que lhe desse notícias do senhor seu Pai. Aguardou resposta e uma voz de Enfermeira comunicou o incompreensível. Seu Pai tinha a falecido nessa madrugada. De 6ª Feira Santa. O inaceitável, o inacreditável havia acontecido. Ligou à Mãe e ao Irmão. Recorda-se de haver pessoas que acompanharam a sua família, que estiveram lá, presentes, compartilhando a dor. Entorpecida, na última hora que passou à cabeceira da urna, ela deixou a memória voar e rever momentos, muitos, bons e menos bons. Sorria e chorava. Os dedos acariciaram os caracóis do cabelo de seu Pai. Ele sentiria? Claro que não. Mas foi a forma mais íntima que achou para se despedir dele. Pareceu querer transmitir em pensamento que esqueceria todas as "sem razão" que a tinham feito sofrer. Pai severo, à moda antiga, esse senhor Pai. Agradeceu-lhe por ter sido o seu. Desejou-lhe boa viagem. Alguém fora culpado? Isso de ser no tronco cerebral, porquê? Como? Nada a fazer? Estas questões passaram-lhe pela ideia. Mas que mais fazer senão aceitar? Faria as perguntas mais tarde. Não ali. Não naquela altura. Acompanhou-o à sua última morada. Desceu à Terra, o nosso comum destino, no Sábado de Pascoela de 1999, durante uma manhã soalheira."
No oitavo ano de ausência do senhor meu Pai, ainda me sinto órfã. Estamos a pensar ir à Serra, passar a Páscoa, este ano. Os mesmos. Continuamos por cá, vivos e a mexer. Só o cão Anourah também partiu, mas há outra no seu lugar - a Bianca. Iremos? Desta vez espero ir.
1 comentário:
Guidinha, que belo texto! Triste mas belo.
beijinho da guida bogalho
Enviar um comentário