Vem aí o fim de semana

Parece que vai estar convidativo a passeios dos tristes. Mas muitos destes passeios, acabam mesmo tristemente. Guardei a página de uma revista - TempoLivre - de Dezembro de 2005. Tinha dois artigos. Um deles, Sereias metálicas. O autor, Fernendo Dacosta. É este, que vou escrever.
*A nossa maneira de viver reflecte-se na nossa maneira de conduzir. Por isso, quem vive inquieto conduz com inquietação. Ao volante todos se transformam, o automóvel torna-se um mundo onde (finalmente) mandamos, nos sentimos livres, realizados; torna-se um novo, outro corpo físico, possante, veloz, protector, fiel. Que nos obedece ao pormenor, resguarda de cansaços, de frios, de agressividades.
A melopeia do andamento, a volúpia das mudanças, da brisa no rosto estabelecem (entre a máquina e a pessoa) relações de cumplicidade, de intimidade indefinidas. Há quem fale com o carro, o acaricie, o admoeste, o ame, o destrua.O conforto do habitáculo, o ritmo da deslocação diminuem a energia do consciente; passa-se a dirigir mecanicamente, envolto, como no cinema, numa languidez fluida. As coisas deslizam para lá das janelas num mundo-écran de que estamos separados por cortinas de vidro. O veículo é que enfrenta a realidade exterior, desempenha por nós o papel activo, interventivo. Em estado de graça, planamos sobre a estrada, sobre a vida, imersos nos nossos invólucros carnal e metálico. Basta ficar imóvel. Não mexer a direcção, não accionar os pedais, as alavancas. Para quê se o despertar trará o sofrimento, como quando se acorda e não apetece levantar para o desconforto, para a decepção?A fronteira encontra-se aí - afirmam os especialistas a propósito das altíssimas taxas de sinistralidade rodoviária - nas fracções de segundo em que o carro pode desfazer-se ou continuar, continuando-nos. O fascínio reside nessa imprecisão, nessa inocência.A euforia (que distorce os reflexos), a debilidade (que quebra a atenção), o cansaço (que afasta a realidade) geram situações que contribuem para as «falhas humanas» responsáveis pela maioria dos desastres - álibis que não decidimos mas não resguardamos.Há pessoas tão carenciadas que transferem para o carro a falta de ternura que não encontram nos outros. Um indivíduo nessas circunstâncias torna-se um indivíduo em perigo.Quando deixamos de ter interesse pela vida, e o stress actual provoca-o cada vez mais, refugiamo-nos nos mundos de evasão que construímos, na bebida, na droga, no sexo, no trabalho, na política, no futebol, na religião. Conduzir faz-se narcótico – ou o contrário, dilatador da tensão arterial, outra forma de provocar o acidente. Desde 1902, altura em que se deu na América do Norte a primeira morte por desastre de viação, já faleceram no mundo três milhões de pessoas – e 50 milhões ficaram estropiadas.«O homem mostra-se cada vez mais apaixonado pelo automóvel e o automóvel cada vez mais o está a suprimir», afirmava o prof. Vasconcelos Marques, responsável pela prevenção rodoviária entre nós. “Trata-se de uma guerra que está perdida já que todas as vítimas têm como grande ambição usufruir do instrumento que as pode vitimar. Se se disser que para o ano vão morrer quinhentas pessoas de febre tifóide passamos a ferver a água; mas se se disser que vão morrer duas mil em desastres de viação ficamos indiferentes”.Tudo em Portugal ajuda a isso: o altíssimo preço dos veículos, das reparações, da assistência, a incomensurável falta de civismo, de vigilância, de socorro.Frequentes são, assim, os desastres inexplicáveis, as quedas em ravinas, em pontes, em falésias, os suicídios cometidos dentro de veículos através de gases respirados e venenos bebidos devagar, ao som de cassetes, no entardecer, a hora preferida dos que se decidem pelo fim. O morrer com o automóvel fez-se significativo, como em certas civilizações com a mulher e os animais caseiros, disso. Irresistíveis ao canto metálico da nova sereia, enrolamo-nos nele e, em massa, aceitamos a imolação.*

Bom fim de semana: Cuidado. Se andar enredado com o canto metálico da nova sereia, tenha cuidado consigo e com os outros que consigo se cruzarem. Eu poderei ser um deles.

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