A importância da vírgula

Sentada à secretária, rodeada de agendas, atendia os doentes. Entre outras funções, fazia marcações de exames endoscópicos. Desde o início do seu desempenho, quando aprendeu as tarefas, compreendeu que tinha de ter a certeza de que os doentes a entendiam e que deviam seguir as suas instruções escrupulosamente. Caso contrário, poderiam ter de repetir os exames, com todos os inconvenientes daí devidos para eles e para o Serviço. Isso, ela assimilou bem e não cronometrou o tempo necessário para se fazer entender. Levasse o tempo que levasse, tinha de ter a certeza que transmitira aos doentes e eles entendiam, a importância de uma boa preparação para fazer os exames. Essa maneira de ser, valeu-lhe muitas outras estórias.
Numa das muitas manhãs de trabalho, um casal de alentejanos na faixa etária dos 70, em que ele era o doente, encaminhou-se à funcionária e encetou uma conversação, em algo diferente dos habituais diálogos que mantinha com os doentes.
-Bom dia mnina, disse o doente. E logo a mulher:
- Atão mnina, cá tamos nós!
- Bom diiiia, respondeu a funcionária, então, preparado para fazer o exame? Dê-me o seu cartão por favor.
Vai a mulher, ao entregar o cartão:
- Hã! mnina, fazemos tudo como mandou, mas custou munto.
- Os clisteres são sempre custosos de fazer, mas não há outra maneira de limpar o intestino! – respondeu a funcionária, pretendendo dar a conhecer ao doente que compreendia a situação e que realmente o pior da preparação era os clisteres.
Vai de novo a mulher:
- Nã foram os clisteres, foi o chá da mantêga. E ao mesmo tempo, o doente:
- Aquilo nã é coisa que se beba bém – ao mesmo tempo que fazia uma careta.
A funcionária ficou por instantes boquiaberta, sem conseguir raciocinar.
- Chá de manteiga? Mas onde está isso escrito?
- No papel que nos deu homessa, pra fazer em casa a preparação - respondeu ele metendo a mão no saco de plástico e retirando de lá a informação escrita.
A funcionária pegou na preparação que o doente lhe estendeu, levantou-se da cadeira para ficar ao nível visual do casal e perguntou: - Mas onde?
O doente, agarrou também no papel, não fosse ele fugir, afastou-o dos olhos até conseguir ler, a mulher agarrou-se ao braço dele, esticou também o dedo para o ajudar a encontrar a frase e apontaram quase ao mesmo tempo – olhe mnina aqui, onde está “uma colher de chá de mantêga” – leu ele pausadamente. E ambos olharam de novo para a funcionária, à espera de uma resposta.
- Ai mnina, custou munto fazê o chá da mantêga. O resto fez-se bêm, o pêto de frango cozido, o pêche cozido … mas olhe, agente nã gosta de mantêga, mas fui comprari, para tomari uma colher de chá ao pequeno-almoço, como vomecê disse!
- Pois foi, agora té lá tá o pacote case intêro… a gente nã tá habituados a comer daquilo…
A funcionária fez uma pausa, incrédula. Nunca tal houvera ouvido. Olhou para a preparação escrita:
Ao pequeno-almoço, só deve comer:
- Duas tostas
- Uma colher de chá de manteiga
- Chá, café …
Não pode beber:
- Sumos de frutos …
Leu a frase “Uma colher de chá de manteiga”. Pois está claro, escrito assim, sem a vírgula a seguir à palavra chá… Está certo o raciocínio feito pelo casal. A sorrir, disse-lhes:
- Não é chá de manteiga! Já percebi. O que queremos dizer é que não podia comer mais do que uma colher de chá (fez uma pausa) de manteiga! Espalharem nas tostas, uma porção de manteiga idêntica à uma colher de chá, percebem?
Olharam-na com cara de espanto. Houve sorrisos à volta, porque entretanto outros doentes foram chegando, e ouvindo a conversa. Como bons portugueses que eram, estavam danadinhos para meterem a sua colher na conversa e opinarem também. O casal olhou um para o outro, rindo. Daí a pouco, riam todos.
- Pois era, disse o doente, que parvoíci, como é cagente nã entendeu… Mas prontos, o pior foi isso – e encolhendo os ombros - mas já passou!
Continuaram com o sorriso estampado na cara, ora olhando para uns, ora olhando para outros, abanando a cabeça - como nã percebemos? - sentaram-se, ajeitaram-se e esperaram.

Escusado será dizer que eu era a funcionária. Por causa de uma vírgula que não foi colocada no sítio certo, tive de reescrever, em stencil, toda a preparação para a Colonoscopia. E porquê? Por causa de um casal de Alentejanos, simpático, bem disposto, na casa dos 70 anos, que pela falta de uma vírgula, fez a única coisa da preparação que eu nem outros faríamos – beber chá de manteiga, porque assim estava escrito.
Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus.*
Há bem 20 anos que isto aconteceu. Hoje, a preparação para uma Colonoscopia é bem mais fácil de fazer. O recebimento do e-mail sobre a utilização da vírgula, activou o registo no meu cérebro para contar esta estória.

*http://artedeviver.no.sapo.pt/bemaventurancas.htm

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